Um
importante defensor de ideias abolicionistas, no final do período escravocrata
no Brasil, tornou-se um pioneiro nos registros antropológicos e na valorização
da cultura africana na Bahia. Manuel Raimundo Querino foi aluno fundador do
Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e da Escola de Belas Artes. Sócio da
Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), do Montepio dos Artistas e do
Montepio dos Artífices, sócio-fundador do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia (IGHB), membro da Irmandade dos Homens Pretos. Tamanha é a
importância e atuação desse antropólogo autodidata que é de se
estranhar a invisibilidade de seu nome, por tanto tempo, nos registros da
história do país.
“Embora
ele só tenha começado a ficar um pouco mais conhecido por nós, pela história
brasileira, recentemente, ele foi um personagem muito importante da segunda
metade do século 19. Um homem – como ele mesmo se dizia – ‘mulato’ nascido
depois do fim do tráfico de escravizados, no Recôncavo da Bahia”, conta a
historiadora Wlamyra Albuquerque.
Ela
explica que a infância de Querino foi marcada por uma epidemia de cólera que o
deixou órfão e fez com que fosse criado por um tutor. Essa experiência foi
definidora da vida desse intelectual e fez com que ele se aproximasse de um
grupo de políticos liberais, liderados pelo conselheiro Dantas.
Albuquerque
relata que a proximidade com esse agrupamento político, de homens importantes
da República, a grande maioria deles de deputados e presidente da província,
fez com que o trânsito e as possibilidades de pensar o universo político fossem
dados para Querino. Com o diferencial de que, à frente do seu tempo, ele era
alguém que também circulava em outros círculos e ambientes políticos, como a
Irmandade do Rosário dos Pretos, a SPD.
“Ele
é um personagem muito especial pra gente entender essa habilidade, essa forma
de fazer política, em que ele podia circular em ambientes dominados por grandes
senhores da política liberal, as sociedades abolicionistas, as conferências –
que aconteceram nas salas da Faculdade de Medicina –, mas também circular em
ambientes em que quase exclusivamente eram frequentados por homens negros”,
destaca a historiadora.
Um grande negociador
Para Wlamyra, o
trânsito político e social de Querino ganha ainda mais força quando se
pensa sobre a trajetória e as bandeiras políticas dele. Ela aponta que,
tempos depois de sua morte, muitas das estratégias usadas por ele
continuam a ser úteis para a população negra. Se por um lado ele denunciava,
por outro também constituía alianças e procurava saídas dentro da lógica
institucional do Estado republicano para fazer valer suas pautas.
“Eu
acho que Querino ocupa uma posição muito destacada nessa maneira de, por um
lado, denunciar e gritar e, por outro lado, fazer aliança, discutir e fazer
acordos. Eu não tenho dúvida de que ele foi um grande negociador, mas nem por
isso deixou de lado pautas que eram centrais. Então, quando a gente lê, por
exemplo, Manuel Querino, que foi também um grande cronista, foi um grande
etnólogo, a gente percebe a maneira como ele foi importante para mostrar a
força e o valor das populações africanas no Brasil”, afirma Wlamyra.
Em
sua atuação como jornalista, Querino fundou os jornais A Província e O
Trabalho, e também contribuiu com artigos para a Gazeta da Tarde. Nas primeiras
décadas do século passado, quando a literatura negra era artefato raro, ele
escreveu obras importantes como A Raça Africana e os seus costumes na Bahia; A
Arte Culinária na Bahia; O Colono Preto como fator da Civilização Brasileira e
A Bahia de Outrora, entre outras.
A
historiadora Albuquerque pontua que Manuel Querino também era versátil na
escrita e lembra de um de seus textos em que defende o africano colonizou o
Brasil. Segundo ela, esse africano é um termo genérico que Querino estava
usando, naquela época, para mostrar que conhecia e dominava muito bem as
categorias de hierarquia das populações, consideradas raças humanas, naquele
momento. E para elevar as nações africanas a um lugar muito destacado na
organização do mundo ocidental.
“A
gente está falando de um cara que foi um político habilidoso, foi um
intelectual muito sofisticado e, ao mesmo tempo, foi também um cronista das
ruas da cidade. Então, Querino conta pra gente sobre o que eram as rodas de
viola e de capoeira no Terreiro de Jesus, ele conta pra gente o que eram as
festas tradicionais da Bahia naquela época, como se fazia para estabelecer as
formas de sociabilidade no espaço urbano, as comidas tradicionais, as festas”,
reforça.
Wlamyra
destaca, ainda, que Querino atuou em muitas frentes da sociedade
brasileira, em um momento crucial em que a escravidão, como instituição, entra
em falência, mas que era preciso lutar para garantir algum lugar de cidadania
para as pessoas negras.
Atual e contemporâneo
Hoje,
um século depois da sua morte, o pensamento, a habilidade, a forma de fazer
política e a atuação vanguardista de Querino seguem contemporâneos e atuais.
Wlamyra evidencia, com admiração, a presença dele na criação do Partido
Operário na Bahia. “Isso é impressionante. A gente está falando do final do
século XIX, dos primeiros anos da República. Então, a gente está falando de um
sujeito político que está muito antenado com tudo o que tem sido discutido e
com todas as suas expectativas e as demandas da população negra e dos
trabalhadores”, reforça a pesquisadora.
Ela
lembra que, naquele momento de profunda transformação na ordem social, Querino
já se utilizava do termo “trabalhadores nacionais”. “É o momento em que o
escravismo acaba. É o momento em que o Império abre espaço para a estrutura
republicana e, nesse mesmo cenário, ele está pensando sobre formas mais justas
de garantir direitos para os trabalhadores e as populações negras no Brasil. É
realmente um personagem dos mais admiráveis que temos no Brasil do século 19.
Viva Querino!”, exalta Wlamyra.
Disponível
em: https://www.geledes.org.br/quem-foi-manuel-querino-intelectual-negro-baiano-nascido-ha-182-anos/.
Acesso em 19/09/2023.
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