Com a ideia de mostrar que santos poderiam estar em
todas as partes do globo, João Paulo 2º também reservou a honra dos altares
para muitos que viveram fora da Europa — onde, por causa da tradição e da
própria história do cristianismo, nasceram a maior parte dos santos católicos.
Em 19 de maio de 2002, há exatos 20 anos, o Brasil
ganhou sua primeira santa. Uma santa nascida em uma cidade onde hoje é a
Itália, é verdade. Mas que, pouco antes de completar 10 anos de idade, mudou-se
com a família para o Brasil, em busca de uma vida melhor. Uma santa imigrante.
Uma santa cuja biografia se assemelha a dos antepassados de boa parte dos
brasileiros.
"Ela nasceu na região de Trento, na
Itália [na pequena cidade de Vigolo Vattaro, na época parte do Império
Austríaco] e mudou-se para [a hoje chamada de] Nova Trento, em Santa Catarina.
Sua família fez parte dessa onda de imigração do final do século 19, em que
europeus vieram ao Brasil fugindo da pobreza e da fome. A história de muitos
antepassados de todos nós", comenta o estudioso de hagiografias Thiago
Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado
da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
Biografia
Seu nome de batismo era Amabile Lúcia
Visintainer. Ela nasceu em 16 de dezembro de 1865, em uma família pobre na
região trentina do Tirol. Em 1875, quando ainda não havia completado 10 anos,
seus pais decidiram se mudar para o Brasil, na onda de imigração europeia que
então estava em seu início.
Conforme conta Maerki, a menina que já demonstrava muita vocação
religiosa viu sua espiritualidade aumentar ainda mais quando a mãe morreu, dois
anos depois da chegada ao novo país. "Ela passou também a ajudar o pai,
assumindo as tarefas de casa", narra ele.
"A descrição que aparece nas hagiografias é de
uma moça, uma jovem, muito devota, muito religiosa, muito apegada à
oração", diz o pesquisador. "Esse caráter da santidade, como é comum
a muitos santos, começou a aflorar quando ela ainda era muito nova."
"Quando [os Visintainer] chegaram ao sul do Brasil,
encontraram uma terra inóspita e difícil de ser cultivada, o que exigia a união
de todos", comenta o escritor J. Alves, graduado em teologia, titular da
cadeira Santa Madre Paulina da Academia Brasileira de Hagiologia e autor de,
entre outros livros, 'Os Santos de Cada Dia'.
"Foi nesse ambiente de luta, de trabalho
constante e resiliente, e de cooperação, que se forjou a alma de irmã
Paulina", acrescenta ele. "Essa realidade vivida pela sua família é
também o cenário da maior parte das famílias brasileiras, que enfrentam dificuldades
e buscam oportunidades de uma vida melhor. O exemplo de contínua superação de
Santa Paulina atrai e leva a alma brasileira a se identificar com ela, que tão
brasileira se tornou, ao ser proclamada a primeira santa em terras
brasileiras."
Segundo Alves, isso ainda "mostra que a
santidade, a busca sincera de Deus, está em toda parte".
Em 1890, a jovem fundou uma nova congregação para
religiosas, na companhia de uma amiga. "Em um casebre, elas acolheram uma
senhora que estava com câncer, em fase terminal. Esse cuidado aos doentes é,
portanto, uma marca da fundação da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada
Conceição", observa Maerki.
Cinco anos mais tarde, quando Amabile já havia
assumido o nome religioso de Paulina do Coração Agonizante de Jesus, os
princípios da instituição já estavam escritos: o serviço aos pobres e os
cuidados aos enfermos e idosos.
Em 1903, Paulina trocou Santa Catarina pela capital
paulista. Instalou-se no bairro do Ipiranga e passou a se ocupar da assistência
a crianças órfãs e ex-escravizados que não tinham onde morar.
"Com esse trabalho ela logo recebeu apoio de
vários padres e também ajuda de benfeitores. Enquanto isso, a congregação
fundada por ela crescia, tanto em Santa Catarina quanto em São Paulo",
relata Maerki.
"Essa ajuda aos pobres, aos doentes, aos idosos,
aos órfãos e aos ex-escravizados se tornaram sua missão, principalmente em uma
época que esses eram a escória da sociedade, não tinham para onde ir, não
tinham quem cuidasse deles. Eram pessoas abandonadas, à margem da sociedade",
pontua o pesquisador. "Essa é a mensagem de Madre Paulina para o mundo de
hoje: ajudar os que estão mais necessitados, principalmente aqueles que não têm
quem olhe por eles."
Maerki conta que a religiosa era "uma mulher muito
firme", "decidida", "dona de si". "Sabia muito
bem com quem lidava e, por sua atuação, incomodou muita gente, principalmente a
elite burguesa paulistana e também pessoas da alta hierarquia da Igreja",
afirma.
Paulina seguiu na capital paulista pelo resto da vida. Nos anos 1930, passou a enfrentar sérios problemas de saúde, principalmente em decorrência de complicações com a diabetes. Ela sofreu várias amputações e perdeu completamente a visão. Morreu em 9 de julho de 1942.
Santa Paulina
Reconhecida pelos que com ela conviveram como uma
mulher santa, ela teve seu processo de canonização aberto pela Igreja, foi
beatificada em outubro de 1991 e, finalmente, declarada oficialmente santa pelo
papa João Paulo 2º em 19 de maio de 2002.
"Evidentemente que houve a aprovação [pelo
Vaticano] de dois milagres. O primeiro possibilitou sua beatificação; o segundo
a canonização. Mas, além dessas importantes sinais de sua santidade, Paulina se
tornou santa com seu próprio testemunho de vida", comenta o hagiólogo José
Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da
Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará. "[Ela vivenciou] o amor
aos mais necessitados, especialmente os doentes, [e cumpriu] a vontade de
realizar o desejo manifesto a ela por Nossa Senhora [em três sonhos relatados
por ela] de fundar a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição."
J. Alves ressalta que Paulina "se tornou santa
porque fez aquilo que todos os santos fizeram durante suas vidas e cada cristão
deveria fazer: dar testemunho do Evangelho, colocando-se inteiramente a serviço
do próximo, especialmentes os mais necessitados e desvalidos".
"A vida de irmã Paulina foi um sinal visível e
concreto da ternura e misericórdia de Deus Pai, no meio de sua gente. Ainda
pequena cuidava da avó enferma. Já em terras brasileira, assumiu os trabalhos
de casa depois que a mãe faleceu, cuidava da idosa que sofria de câncer. Pegou
na enxada e trabalhou duro na lavoura, criou associações de trabalho
comunitário, de um casebre fez um hospital. Sem estudo, sem dinheiro, confiada
na Providência Divina, com algumas amigas fundou a Congregação das Irmãzinhas
do Imaculado Coração, que tanto bem tem feito à nossa gente", pontua o
escritor.
Mesmo não tendo nascido no Brasil, é considerada a
primeira santa brasileira. "Isto porque alguns santos são mais marcados
pelo lugar de atuação pastoral do que pelo lugar de nascimento. Ela nasceu na
atual Itália, mas teve todo o apostolado no Brasil, por isso é considerada uma
santa brasileira de fato", argumenta Maerki.
Lira ressalta que, assim como o fez em seu livro A Caminho da Santidade, ele
defende que "a pátria do santo é determinada pelo local do seu novo
nascimento, ou seja, do seu falecimento, do 'retorno à Casa do Pai'".
"E, ainda, onde este desenvolveu suas atividades, exercendo as virtudes
cristãs", argumenta.
"Então, a pátria de Santa Paulina é o Brasil, onde ela
viveu desde tenra idade e onde ela entregou sua vida terrena nos braços do Pai
Altíssimo. Tenho um vídeo quando da aprovação da imagem reconstruída de Santa
Paulina, da grande Irmã Célia Bastiana Cadorin, postuladora [defensora da causa
de canonização junto ao Vaticano] de Santa Paulinha e de Santo Antonio Galvão,
no qual ela afirma que Santa Paulina era 'brasileira, brasileira'",
acrescenta Lira.
"Por quê? Porque quando o governo brasileiro
determinou que todo estrangeiro se declarasse ou então seria automaticamente
naturalizado brasileiro [no decreto chamado de Grande Naturalização, de
dezembro de 1889], a santa não o fez, sendo, portanto, naturalizada brasileira.
Além de que, depois que ela chegou ao Brasil, com 9 anos de idade, nunca mais
saiu do Brasil, sendo aqui sua verdadeira Pátria!"
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-61505368.
Acesso em 22/05/2022.
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