A Revolta dos Búzios, também conhecida como Revolta
dos Alfaiates ou Conjuração Baiana, foi um movimento emancipacionista popular
que se iniciou em 12 de agosto de 1798, exatamente dois meses antes do
nascimento de Pedro I. E terminou no fim de 1799 — em 8 de novembro daquele ano
os quatro líderes acima mencionados foram executados em praça pública.
Diferentemente da maneira como o processo de
independência brasileira acabou sendo costurado, culminando no 7 de setembro de
1822, era uma articulação popular que, entre suas bandeiras, pedia o regime
republicano e o fim da escravidão.
Muitos dos participantes do movimento, inclusive
Virgens e Veiga, Amorim Torres, Santos Lira e Deus Nascimento, eram negros.
Revoltas como
esta ocorreram nas décadas que precederam a Independência brasileira e, cada
vez mais, são exemplos recuperados por historiadores de como a historiografia
oficial do país acabou ofuscando a participação do negro em episódios
importantes. Ao mesmo tempo, suscitam a reflexão: se uma luta assim tivesse
conseguido prosperar, a sociedade brasileira poderia ter sido organizada de
forma completamente distinta, com abolição da escravidão quase um século antes
e regime republicano sem passar pelos dois governos imperiais, conduzidos por
descendentes da mesma casa portuguesa.
É interessante perceber o quanto a história do Brasil é contada
do ponto de vista do colonizador e do branco. A independência foi um desses
momentos que atendeu apenas a uma elite, não dando conta de garantir a
liberdade para a maior parte da população brasileira, os negros e
indígenas", comenta o pesquisador da história negra Guilherme Soares Dias,
consultor em diversidade.
"Não aprendemos sobre esses fatos sob outra perspectiva e nem temos esses debates nas escolas. Esse era um momento efervescente da busca pela abolição com várias revoltas no Brasil e outros países conquistando essa liberdade do povo negro. A história ainda retrata apenas um lado e a gente ainda precisa buscar outras informações sobre esse período", completa ele.
"Esse apagamento das lutas negras faz parte
de um racismo estrutural que é resquício daquele momento em que o negro não era
visto como humano e sim como coisa. A sua história, seus costumes, sua cultura,
seus pensamentos não importavam, já que ele era animalizado. As pessoas
precisam ter raiz."
Dias afirma que a primeira coisa tirada pela
escravidão foi a própria história da população negra. "Ainda hoje
precisamos fazer essa busca e jogar luz para heróis, lutas e acontecimentos que
foram importantes para as pessoas negras", diz. "Essa é a narrativa
que a história do Brasil ainda não conta."
Lutas
contra o domínio português
Professora na Universidade Federal
Fluminense e integrante da Rede de Historiadores e Historiadoras Negros, a
historiadora Ynaê Lopes dos Santos cita três como os principais movimentos que
pediam a separação de Portugal antes do famoso 7 de setembro. Além da Revolta
dos Búzios, também destaca a Inconfidência Mineira, de 1789, e a Revolução
Pernambucana, de 1817.
A transferência da família real
portuguesa para o Rio de Janeiro, nesse contexto de fuga das tropas
napoleônicas no início do século 19, acabou sendo crucial para que ocorresse no
Brasil uma história da independência tão diferente do que ocorreu em outros
países latino-americanos — a começar, por não vir junto com um regime
republicano.
"O Brasil já tinha uma elite de
funcionários públicos, funcionários do governo e latifundiários que não queriam
perder as conquistas adquiridas com a chegada da corte portuguesa",
completa Rezzutti.
"A não ser no caso do Haiti, não
há nenhum país da América Latina em que a Independência não tenha sido conquistada
pela elite [branca]. Aqui no Brasil houve o agravante: tornou-se império porque
acreditava-se que a elite brasileira não fosse tão esclarecida intelectualmente
quanto o restante da elite latino-americana. Então se temia que o Brasil se
fragmentasse em diversos países", explica o pesquisador.
"A ideia de manter o regime
monárquico foi para garantir a integridade do Estado nacional. Mas isso acabou
tendo a consequência de que a parte hegemônica da elite pensava totalmente
contra a abolição", prossegue ele.
Essa acabou se tornando a narrativa
preponderante, afinal, como lembra Rezzutti, "a história é escrita pelos
vencedores, e a elite foi a vencedora da Independência". "Uma elite
escravocrata, formada por latifundiários e burocratas que dependiam do trabalho
escravo", afirma.
A historiadora Ynaê Lopes dos Santos
ressalta que é preciso diferenciar "o que foi o processo de independência
do Brasil" e "a história que se contou sobre isso".
"Temos um acesso muito limitado
ao processo de Independência, que faz parte de um projeto nacional de contar a
história como se fosse um fato que começa e termina no 7 de Setembro",
pontua ela. "Na verdade, foi algo mais complexo, envolvendo uma série de
interesses. A forma de contá-la tem o propósito de marcar a história do Brasil
como uma história pouco conflituosa e pouco combativa."
Para Santos, o ponto-chave nessa
compreensão está em encarar a homogeneidade étnica e cultural daqueles que
ocupavam os altos postos do poder nas primeiras décadas do século 19 — os
deputados que representavam as capitanias brasileiras na Assembleia de Lisboa
e, com a Independência, os que formam a Assembleia do Rio de Janeiro.
"Esse alto escalão político
brasileiro era formado majoritariamente por homens brancos escravocratas,
formados na mesma universidade, de Coimbra, ensinados pelos mesmos
professores", define ela. "Comungavam as mesmas experiências e visões
de mundo."
Por isso, ela explica, não existiu
nesse momento da Independência um debate em relação à manutenção ou não da
escravidão. "Foi uma questão silenciada. A manutenção da escravidão se deu
pelo próprio silenciamento da existência da escravidão na carta constitucional
de 1824", afirma a historiadora. Citando o historiador Luiz Felipe de
Alencastro, ela repete que "o Brasil foi um país que nasceu apostando no
futuro da escravidão".
"Aposta esta que silenciava
justamente o que era a jurisdição, colocando-a na salvaguarda da propriedade
privada", explica.
"Existia um acordo da classe
política brasileira, em sua imensa maioria, para que fosse construído um país
soberano alicerçado na manutenção da escravidão", complementa.
"Porque havia a compreensão que a própria unidade nacional estava
vinculada à manutenção da escravidão. A escravidão acabou sendo a instituição
que ordenou o funcionamento da sociedade brasileira, não só economicamente, mas
também política e socialmente."
Outro aspecto lembrado pela
professora são as tantas revoltas que ocorreram para consolidar a
independência. E aí novamente é preciso olhar para a Bahia, que acabou
revivendo os ideais da Revolta dos Búzios no início da década de 1820 — com a
guerra da independência ocorrida, de fato, em 2 de julho de 1823.
"Naquela província, vimos os
contornos mais radicais da efetivação da Independência, com as pessoas
expulsando as tropas portuguesas de seus territórios", diz Santos.
"Um olhar um pouco mais crítico
em relação à Independência do Brasil pressupõe pelo menos uma análise de duas
escalas desse processo: aquele feito pela classe política, pela oligarquia
político-econômica brasileira; de outro lado, o chão das províncias, as pessoas
que realmente transformaram esse projeto de Independência em um fato
real", explica a historiadora. "Nesse ponto, há uma presença muito
forte de sujeitos que tiveram suas histórias silenciadas, homens e mulheres,
negros, mestiços, pobres, etc."
Mas a historiografia oficial acabou
realçando apenas o primeiro grupo. E esse apagamento ocorreu não só dessas
revoltas pós 7 de Setembro, como também dos movimentos que ocorriam antes.
"As revoltas do Brasil colonial, muitas tinham objetivos separatistas,
abolicionistas e republicanos. Isso acabou suprimido da história oficial
brasileira", complementa a professora.
Racismo estrutural
Ao apagar a participação do negro, a história cria um
arcabouço para a manutenção do racismo estrutural. "A leitura oficial do 7
de Setembro é calcada e estruturada pelo racismo. Isso faz parte de um projeto
de nação que se constituiu que se reforçou ao longo dos anos, inclusive com o
advento da República, já que boa parte do que é ensinado sobre a Independência
foi gestado no período republicano", frisa a historiadora Santos.
"A maneira como aprendemos a história da
Independência do Brasil é mais um dos expoentes sintomas do racismos estrutural
brasileiro, que silencia as inúmeras histórias e participações da população não
branca na formação do país", acrescenta ela.
"A invisibilidade é uma das marcas desse poder
que nega e silencia os sujeitos históricos negros e indígenas", diz o
historiador Paz. "Essa 'história escrita por mãos brancas', como sentencia
a historiadora negra brasileira, Beatriz Nascimento, é produzida tanto no
apagamento do negro na história do Brasil, quanto no descrédito das suas
narrativas no presente."
Para o historiador, o próprio movimento de
independência do Haiti — guerra travada de 1791 a 1804 que acabou resultando na
primeira república americana governada por pessoas de ascendência africana —
deixava as elites brasileiras apreensivas que algo parecido pudesse ocorrer.
"Acredito que as disputas pelos sentidos em torno
do 'grito do Ipiranga' e a própria independência em si, da maneira que se deu,
significa menos uma ruptura anticolonial e mais uma articulação antinegra,
muito pelo medo dos rumores que desciam do Haiti", comenta ele.
Para Reis, na consolidação do Estado nacional
brasileiro houve uma intenção de "não lembrança", de "não
significação" dos elementos de luta negra, indígena, de gênero e,
"sobretudo, de classe". "Eles são apagados em nome da manutenção
do poderio da elite local, que 'faz', enfim, a Independência e dão sentido a
ela."
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58468215.
Acesso em 07/09/2021.
Foto: Google Imagens.
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