Não
à toa, uma aluna disse que uma canção como “Fim de semana no parque” fala com
propriedade da segregação espacial na cidade de São Paulo tanto quanto um livro
como “Cidade dos muros”, de Teresa Caldeira. O próprio DJ americano Afrika
Bambaataa já disse que o quinto elemento do hip hop (formado originalmente por rap, DJing, breakdance e grafite) é o conhecimento.
A
expressão “hip hop studies” ganhou força a partir da publicação de “That’s the
joint!: the hip hop studies reader”, antologia organizada por Murray Forman e
Mark Anthony Neal em 2004. Desde então, o campo de estudos se consolidou em
importantes universidades americanas, como Duke, Princeton e Harvard, onde
funciona o Hiphop Archive & Research Institute. No Brasil, o interesse
também vem crescendo. Do Amapá a Minas Gerais, jovens pesquisadores defendem
teses e oferecem cursos sobre o movimento que se espalhou pelas periferias de
todo o mundo nos anos 1980.
‘Honoris causa’
Desde
2018, por exemplo, “Sobrevivendo no inferno”, álbum dos Racionais
já editado em livro, faz parte das obras cobradas no vestibular da Unicamp. No
ano passado, a universidade criou o I Arquivo Brasileiro da Cultura Hip Hop,
que reúne material como álbuns, livros, fotos e documentos sobre o gênero.
Agora, a instituição estuda conceder doutorados honoris causa aos membros dos Racionais.
Em
novembro, Mano Brown, Ice Blue e KL Jay (Edi Rock não compareceu) foram a Campinas
dar aula assistida presencialmente por 700 pessoas e transmitida via YouTube.
Na tal aula de “hip hop studies” em dezembro, da disciplina “Tópicos de
antropologia IV: Racionais MC’s no pensamento social brasileiro”, acompanhada
pelo GLOBO, a professora Jaqueline Santos comemorou a audiência:
mais de 192 mil visualizações on-line até então (já são mais de 220 mil).
Oferecido pelo Departamento de Antropologia da Unicamp, o curso contou com 45
alunos matriculados — não somente de Ciências Sociais, mas também de História,
Biologia e Engenharia Civil — e 18 ouvintes. Devido ao grande número de
inscritos, foi preciso procurar uma sala de aula maior.
Em
semestre anterior, Santos já dera um curso de introdução aos “hip hop studies”,
no qual examinou os elementos da cultura, apresentou a cena em países como
Cuba, Colômbia e Angola e trabalhou textos de pesquisadores como Elaine Nunes
de Andrade, autora de estudo pioneiro sobre o movimento no Brasil. A
bibliografia sobre o tema está em expansão. Ao lado de Daniela Vieira, professora
de Sociologia da Universidade Estadual de Londrina, Santos coordena a coleção
Hip Hop em Perspectiva (editora Perspectiva), que lançou “Barulho de preto”, de
Trica Rose, e prepara uma antologia sobre os Racionais e uma tradução de “From
black power to hip hop”, de Patricia Hill Collins.
Tudo interligado
Os “hip hop studies”
conversam com diversas áreas do saber. Santos lembra que, no semestre que
passou em Harvard,
eram oferecidas disciplinas sobre hip hop nos departamentos de Antropologia,
Economia e Ciências da Religião. Professora da Universidade da Califórnia,
Halifu Osumare acredita que tamanha interdisciplinaridade reflete o fracasso
das ciências humanas em incluir “as perspectivas dos marginalizados”. O hip
hop, diz, é a produção de “intelectuais das ruas”:
—
A experiência também gera conhecimento. Consciente das muitas indignidades
sociais, a juventude usa o hip hop para falar do próprio cotidiano. É isso que
chamamos de “droppin’ science” (fazer rap sobre assuntos
importantes). Um dos objetivos dos “hip hop studies” é o “repping
your hood”. Traduzindo: representar a quebrada onde o conhecimento foi
produzido, em meio à pobreza, a interações com a política e o crime e à luta
pela sobrevivência — afirma.
Santos
diz que o hip hop propõe discussões complexas sobre relações raciais e de
gênero, segregação espacial nas cidades, sistema carcerário e outros assuntos
ligados a “grupos historicamente discriminados”. E que também dialoga
com autores que pensaram o racismo brasileiro, como Alberto Guerreiro
Ramos e Clóvis Moura, além de questionar clássicos que não teriam dado a devida
atenção ao tema.
—
O hip hop tensiona a questão racial de uma maneira que um autor como Sérgio
Buarque de Holanda foi capaz de fazer. Gilberto
Freyre, com seu conceito de lusotropicalismo, não conseguiu explicar
a tensão racial como produtora de desigualdade e violência. Até pensadores
contemporâneos têm dificuldade — diz.
Daniela
Vieira afirma que o rap denuncia genocídio negro e refuta a tese da democracia
racial de forma mais explícita do que os clássicos, mas faz
ressalva:
—
Hip hop também é ciência, e grupos como os Racionais abordam problemáticas
caras ao pensamento social brasileiro de forma mais direita e com mais fácil
circulação do que os clássicos. Mas não podemos esquecer que são materiais
diferentes. Uma coisa é uma expressão artística ligada a um movimento social.
Outra é um ensaio de interpretação, fruto de um processo mais lento.
Segundo
ela, a inserção da cultura hip hop na academia reflete a “nova condição do
rap”, que passou a ocupar “novos espaços sociais”.
Num
ensaio publicado em 2020, Halifu Oxumare mostra, com base em dados, que o uso
do hip hop em escolas e universidades americanas contribui para melhorar o
desempenho de alunos que não são brancos. Autora de “A pedagogia hip hop:
consciência, resistência e saberes em luta” (Appris), Cristiane Correia Dias vê
o mesmo resultado nas escolas onde trabalha, na periferia de São Paulo. Seu
desafio é orientar professores a usar o hip hop para introduzir os assuntos do
currículo escolar. Ela dá um exemplo: uma canção como “Negro
drama”, dos Racionais, ajuda a entender conceitos geográficos como
marginalização e facilita a relação com autores como Milton
Santos.
—
Eu mesma só entendi Freud porque conhecia “Sobrevivendo no
inferno” — brinca.
Mestranda
na Unicamp, Gabriela Costa Lima — ela fez o curso sobre os Racionais e
pensamento social brasileiro — afirma que legitimar o conhecimento transmitido
pelo hip hop aumenta a “autoestima acadêmica” dos alunos da periferia.
—
Nosso capital cultural também tem valor. Tem quem entre na universidade já
sabendo quem são Durkheim, Lévi-Strauss e Bourdieu. A gente entra aqui
conhecendo os Racionais — diz.
Fonte:
https://www.geledes.org.br/como-o-hip-hop-invadiu-as-universidades-para-dialogar-de-igual-para-igual-com-as-ciencias-humanas/.
Acesso em 13/01/2023.
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