Para quem estuda o tema, uma
interpretação do conto bíblico, que trata de uma maldição lançada por Noé
contra seu próprio neto, incentiva um racismo de fundo religioso no país e a
perseguição contra religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda.
No contexto da eleição, a
campanha do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) tem tentado
associar seu adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT),
justamente a religiões afro-brasileiras, ao mal e aos demônios.
Católico, o petista também é
acusado por bolsonaristas de ser "anticristão" e de querer fechar
igrejas caso seja eleito - Lula sempre negou que fará isso, e costuma citar ter
aprovado projetos favoráveis aos evangélicos quando era presidente, como o Dia
do Evangélico (30 de novembro).
Em agosto, por exemplo, a primeira-dama Michelle
Bolsonaro criticou Lula nas redes sociais por um vídeo em que o petista aparece
sendo abençoado por mulheres de religiões afro.
"Isso pode, né? Eu falar de
Deus não pode, né", escreveu a primeira-dama, em resposta a uma publicação
de uma vereadora da direita radical que falava que Lula "vendeu a
alma" para vencer as eleições.
Bolsonaristas também têm
associado a companheira de Lula, a socióloga Rosângela Lula da Silva (conhecida
como Janja), às mesmas religiões.
Já Bolsonaro tem dito que as
eleições são uma batalha do "bem contra o mal" — e ele seria o bem.
Nos últimos anos, fiéis da
umbanda e do candomblé vêm sofrendo ataques de intolerância religiosa, como
destruição de terreiros, agressões físicas e xingamentos.
Mas
até chegar às eleições deste ano, essa história mítica da família de Noé passa
pela escravidão, racismo, embranquecimento da população, igrejas evangélicas e
pela chamada Bancada da Bíblia no Congresso. E ela começa no livro de Gênesis,
que narra a criação do mundo.
Nudez e maldição
O Antigo Testamento conta que, depois do dilúvio, Deus
procurou Noé para selar uma aliança. A destruição iria cessar e todos que
saíssem da famosa arca — humanos e animais —, iriam repovoar a Terra.
Noé tinha três filhos: Jafé, Sem
e Cam. Esse último também tinha um filho, Canaã, neto do patriarca.
Depois do dilúvio, Noé virou
lavrador e plantou um vinhedo. Um dia, "bebendo do vinho, embriagou-se e
achou-se nu dentro da sua tenda", narra a Bíblia.
"Cam, pai de Canaã, viu a
nudez de seu pai, e contou a seus dois irmãos que estavam fora. Então tomaram
Sem e Jafé uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e, andando virados para
trás, cobriram a nudez de seu pai; tiveram virados os seus rostos, e não viram a
nudez."
Quando acordou, Noé ficou
possesso ao descobrir que seu filho tinha visto sua nudez - algo considerado
inaceitável. Então, resolveu amaldiçoar Canaã, tornando seu neto um servo.
"Maldito seja Canaã, servo dos servos será de seus irmãos", disse Noé.
Nessa povoação, Jafé teria levado à criação dos
europeus, germânicos e arianos. Sem teria originado os povos semitas. Já povos
da Ásia Oriental descenderiam de Cam.
Mas Canaã, filho de Cam
amaldiçoado pelo avô, seria o pai dos etíopes, sudaneses, ganeses e ameríndios.
Ou seja, os africanos seriam descendentes de Cam e de Canaã.
Para o pastor Kenner Terra,
doutor em Ciências da Religião, o mito é uma "etiologia", ou seja,
"um texto que pretende explicar a razão de certos nomes ou práticas".
"Essa tradição justificou,
bem posteriormente, os conflitos entre o povo de Israel e Canaã, descendente de
Cam", explica.
Segundo texto do historiador
Hiran Roedel, doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), o destino dos três filhos de Noé e de seu neto Canaã ajudam a explicar
por que essa narrativa foi usada por europeus e por ramos do cristianismo como
justificativa para escravizar outros povos, principalmente indígenas e
africanos.
"Quando as rotas das grandes
navegações se estabelecem, dão-se em direção, para efeito de comércio, das
terras que, segundo a Bíblia, haviam sido povoadas pelos descendentes de Cam,
os amaldiçoados. Nesse sentido, eram povos que poderiam e deveriam ser subjugados,
segundo o entendimento no texto sagrado", escreve Roedel.
O historiador André Chevitarese,
professor do Instituto de História da UFRJ, explica que o mito de Cam foi
utilizado para pintar a África como "personificação do mal" por conta
da "origem amaldiçoada de sua população" por conta dessa
interpretação do mito bíblico.
"O continente passou a ser
marcado como demoníaco, amaldiçoado por Deus e formado por pessoas mergulhadas
no pecado. O uso simbólico desse mito inunda a cabeça das pessoas sem que elas
se deem conta. Essa imagem é utilizada até hoje", explica.
'A
redenção de Cam'
O mito de Cam também ajudou a
ilustrar o projeto racista de embranquecimento da população brasileira depois
do fim da escravidão em 1888, principalmente com a chegada de imigrantes
europeus que substituíram a mão de obra escravizada.
Uma das mais famosas pinturas da
época é A Redenção de
Cam, do pintor espanhol Modesto Brocos, que viveu no Brasil por algumas
décadas.
A tela, de 1895, mostra uma
mulher idosa e negra erguendo as mãos e os olhos aos céus. Ao lado, há outra
mulher mais jovem, provavelmente filha da idosa, de pele mais clara. Ela segura
um bebê branco.
À direita há um homem também
branco, que seria o marido e pai da criança, olhando para o filho com certa
admiração.
Em entrevista ao Nexo Jornal em 2018, a historiadora e
antropóloga Tatiana Lotierzo, autora do livro Contornos do (In)visível: Racismo e Estética na Pintura
Brasileira (1850-1840), argumenta que as personagens da pintura representam
as três gerações necessárias que supostamente tornariam o Brasil um país
branco.
Nessa análise, a redenção dos
"descendentes" de Cam e de Canaã seria sua extinção como pessoas
negras.
Ou seja, o bebê da pintura,
descendente da idosa negra, representaria esse embranquecimento. "O quadro
de Brocos, ao apelar para a ideia de redenção, é sem dúvida uma tela
racista", disse a antropóloga.
"Uma das associações que
aparecem com mais frequência na imprensa do período, em textos escritos por
intelectuais renomados, como Olavo Bilac e Coelho Neto, é justamente a da morte
como redenção, para as pessoas negras. São textos de muita violência, pois
concebem que a extinção dessas pessoas, inclusive pela via do embranquecimento,
é o caminho para a emancipação", explicou Lotierzo.
Uso político
Mais recentemente, em 2011, o
mito de Cam foi resgatado pelo pastor evangélico Marco Feliciano (PL) para
dizer que a África é "amaldiçoada". O religioso, que na época era
deputado federal, foi eleito novamente para o cargo nas eleições deste ano.
"Africanos descendem de
ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato. O motivo da maldição é polêmica.
Não sejam irresponsáveis twitters rsss", escreveu o pastor e político.
Ele continuou: "Sobre o
continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias,
doenças oriundas de lá: ebola, aids. Fome... Etc. Não tem nada de comentário
racista. É um comentário teológico que está na Bíblia."
Feliciano apagou a mensagem após
ser questionado por jornalistas.
Na época, o pastor precisou se explicar ao Supremo
Tribunal Federal (STF) após ser acusado de discriminação e preconceito de raça
pela Procuradoria-Geral da República (PGR) - ele também respondeu por
comentários homofóbicos.
Em sua defesa, afirmou que
"a crença dos cristãos de os problemas e obstáculos não surgirem
necessariamente de atos do governo e ou empresários, mas do Céu, ou seja, como
se a humanidade expiasse por um carma, nascido no momento em que Noé amaldiçoou
o descendente de Cam e toda sua descendência, representada por Canaã, o mais
moço de seus filhos".
Para o pastor Kenner Terra,
embora o mito de Cam não seja mais tão utilizado "como instrumento de
legitimação do racismo", ele tem "potência simbólica e pode servir
para discursos violentos."
Já a pesquisadora Tayná Louise De
Maria, doutoranda em História Comparada pela UFRJ, acredita que o mito se faz
presente de maneira simbólica até na representação do mal dentro das igrejas e
em publicações.
"Em muitas igrejas e em
revistas evangélicas, o mal é sempre representado pelas cores escuras",
disse em entrevista recente à
BBC News Brasil.
Segundo ela, que estuda
intolerância religiosa no Brasil, a imagem de uma" África
amaldiçoada" ainda ressoa no imaginário de quem combate as religiões de
matriz africana como uma vertente do mal.
Por causa disso, diz, a
intolerância afeta os fiéis "do momento em que a pessoa coloca suas roupas
religiosas até quando anda na rua."
Intolerância
religiosa
Assim como outras manifestações culturais da população
negra, as religiões afro-brasileiras historicamente enfrentam perseguições e
até criminalização.
Embora a Constituição de 1891, a
primeira da República, garantisse a liberdade de culto, o Código Penal de 1890
estabelecia como crime, por exemplo, "praticar o espiritismo, a magia e
seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de
ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis."
No Rio Janeiro, durante muito tempo
o museu da Polícia Civil armazenava centenas de objetos relacionados ao
candomblé e à umbanda, artefatos que eram confiscados no início do século
passado em batidas policiais em terreiros. Recentemente, uma campanha de
religiosos conseguiu recuperar esse acervo.
Nos últimos anos, casos de
intolerância contra religiosos vêm se avolumando.
Segundo o Relatório Sobre
Intolerância Religiosa no Brasil, produzido pelo Centro de Articulação de
Populações Marginalizadas (Ceap) e pelo Observatório das Liberdades Religiosa
(OLR), apenas no Estado do Rio de Janeiro foram registrados 47 casos de
intolerância contra religiões de matriz africana no ano passado.
Em 56% dos casos, aponta o
relatório, o violador era "cristão evangélico".
Há desde invasão e depredação de templos
e terreiros a ameaças, mensagens preconceituosas em redes sociais, xingamentos
a fiéis e até agressões.
m um deles, narra o documento, uma sacerdotisa do
candomblé e seus dois filhos, trajados de branco, foram agredidos por um
motorista de aplicativo. Ele os expulsou do automóvel e arremessou seus objetos
para fora, chamando os passageiros de "satanás".
Para Denisson D'Angiles,
sacerdote do Instituto Centro Espiritualista de Umbanda Estrela Guia,
religiosos dessas vertentes são vistos como "obreiros do demônio".
"Há uma tentativa de nos
associar a uma espécie de pecado capital, como se fôssemos inimigos a serem
combatidos. Todos os dias somos xingados e questionados porque usamos nossa
indumentária branca, todos os dias preciso me explicar para as pessoas",
diz.
Já o babalaô Ivanir dos Santos,
professor da pós-graduação em História Comparada da UFRJ, acredita que o
discurso preconceituoso de autoridades e políticos influencia diretamente no
cotidiano dos religiosos que precisam enfrentar a intolerância.
"Em um país racista, o
discurso está se transformando em ações práticas contra terreiros e religiosos.
Ao invés de falarem de questões sociais, da fome, do desemprego, estão
utilizando as religiões com objetivos políticos e econômicos", diz.
O babalaô, que mora no morro da
Mangueira, no Rio de Janeiro, diz que a convivência com os evangélicos na
região tem sido respeitosa, embora o diálogo "não seja muito fácil".
"Na verdade, quando a gente
pensa em violência, os evangélicos são os que mais sofrem perdas. Muitos
evangélicos, inclusive crianças evangélicas, são mortos em situações de
violência. A bala perdida não sabe se você toca atabaque ou lê a Bíblia, mas
sabe que você é preto e pobre", diz.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63209322.
Acesso em 18/10/2022.
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